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Leça da Veiga: homenagem merecida ao médico que introduziu a problemática da infeção nosocomial em Portugal

As V Jornadas Regionais Temáticas de Infeciologia, presididas pela última vez pelo especialista José Poças (que presidiu às comissões organizadora e científica e a dois dos três simpósios satélites do encontro), aconteceram em Sesimbra nos dias 24 e 25 de março, e foram dedicadas ao tema das “infeções na população geriátrica”. Na sessão que antecedeu o encerramento destas jornadas, por iniciativa de José Poças, foi prestada homenagem ao médico lisboeta Carlos Leça da Veiga, nascido em 1931, que dedicou a sua vida à especialidade de infeciologia, o introdutor em Portugal da problemática da infeção nosocomial. Com toda a sua carreira médica hospitalar no Hospital de Santa Maria e no regime de dedicação exclusiva, temos também que destacar a intensa atividade e interesse cívico são bem notórias mesmo antes de acabar o curso: Leça da Veiga marcou a vida na cidade de Coimbra onde  foi ativista do MUD Juvenil, e nessa condição foi proposto, em dois anos seguidos, como candidato às eleições para a direção da Associação Académica dessa cidade. Na área cultural, em 1954 foi eleito para o Conselho Cultural desse organismo estudantil, foi ainda membro da direção do Cine Club de Coimbra e pertenceu à direção da delegação em Coimbra do Círculo de Cultura Musical. Durante a homenagem de que foi alvo, o especialista David Morais fala precisamente deste lado: “Leça da Veiga é um homem de uma cultura extraordinária; um senhor. Escreve muito bem e é coerente nos princípios que defende. Podemos não concordar com alguns pontos de vistas de Leça da Veiga mas é um homem que se tem batido pelos princípios da integridade da profissão e da sociedade”, frisou bem.

Nessa luta por princípios, Leça da Veiga é preso em 1955 às ordens da PIDE, ano em que foi incorporado no Exército e mobilizado para o, então, Estado Português da India. Em 1969 e em 1970, teve iniciativa de, em Lisboa, propor as greves realizadas pelos médicos internos. Greves muito diferentes, como contou Leça da Veiga. “O ministro da Saúde prometeu que todos teriam lugar para a especialidade terminado que fosse o exame mas no final disse só entravam 50%… Resultado? Fizemos greve! (…) E foram muitos internos para a rua [despedidos] e foi reunida uma junta de coronéis que foi tomar conta do Santa Maria e dos hospitais civis… (…) Durante os dias de greve a população não pagou nada” e os médicos não receberam mas Leça da Veiga fez um registo manual de todos os doentes e todos foram vistos. “No ano a seguir [1970] um assistente do Prof. Pádua pediu-me ‘Oh Leça, proponha lá a greve’. E assim foi. E resultou! Nós passamos a ganhar e deixamos de ser estagiários passando a ser internos. Correu bem sem termos que prejudicar a população pois fizemos todo o trabalho. Apenas não pagaram nada pelos serviços”, explicou perante a audiência das V Jornadas Regionais Temáticas de Infeciologia.

Em 1970, Leça da Veiga foi eleito para os corpos sociais da Ordem dos Médicos dos quais, em 1973, foi demitido pelo Governo marcelista e enviado para interrogatório na Prisão de Caxias. Em 1974 fez a proposta da Integração das Carreiras Médicas Assistencial, Docente e de Investigação (Decreto-Lei 674/75). Em 1975 foi um dos autores do “Relatório do Grupo de Trabalho para o Estudo da Carreira Médica”, uma iniciativa do Dr. Céu Coutinho, então, Diretor-Geral dos Hospitais. Durante toda a sua carreira médica, em Portugal, palestrou em variadíssimas cidades e hospitais a propósito das doenças infeciosas e em, Estrasburgo, no Palácio da Europa, por convite da “Association Internacional pour la Recherche en Hygiene Hospitaliere”.

Embora debilitado fisicamente, Leça da Veiga quis partilhar estes momentos de homenagem com os colegas, durante estas Jornadas Temáticas de Infeciologia, em que se lembraram histórias de um percurso de vida muito rico, quer profissional quer pessoalmente, aqui recordado por histórias contadas pelo colega David Morais, como já referimos,  mas também pelo seu colega e amigo José Poças e por José Leon Bernardo que realçou o empenho de Leça da Veiga no combate às infeções hospitalares. O próprio homenageado confirma: “Ia todos os dias ao laboratório de bacteriologia buscar os resultados e diariamente atualizada a listagem de microrganismos que havia no hospital” – isto num tempo em que os registos eram manuais, o que faz com que todos os colegas o recordem com muito papel de baixo do braço, os mesmos papéis onde fazia os seus minuciosos registos.

José Poças, um homem que “desafia e inquieta”, como foi referido, foi também muito elogiado pelos colegas pela dedicação a estas jornadas e aos amigos.  “Quero agradecer ao meu amigo José Poças que me tem tratado de uma maneira admirável ao longo de tantos anos. Gratidão também pela lembrança desta homenagem”, frisou Leça da Veiga.

“O meu mérito foi saber escolher as pessoas que fizeram as intervenções de grande qualidade destas e das anteriores jornadas”, mencionou José Poças, a quem coube encerrar o encontro. “Foram mais de 250 inscritos que por aqui passaram ao longo de 3 dias. A todos deixo o meu agradecimento. (…) Temos que saber dizer adeus. E este é o meu adeus a estas jornadas. Vamos nos continuando a encontrar noutros projetos, noutra condição. Tive muito gosto em presidir pela ultima vez a estas jornadas e em homenagear o meu querido amigo Leça da Veiga. Obrigado a todos”, concluiu.

Estas Jornadas decorreram em Sesimbra, após um interregno de 4 anos, devido aos adiamentos forçados pela pandemia. O encontro diferencia-se de outros por ser regional, monotemático (este ano devotado à Patologia Geriátrica), por se iniciar com um curso de atualização (nestas, sobre vacinação), pelo facto da primeira conferência, antes da cerimónia de abertura, ser orientada para a história da medicina (em 2023 foi proferida por um historiador, Jaime Nogueira Pinto, que abordou o tema das Pandemias), por ter uma conferência surpresa efetuada na cerimónia de abertura – na qual José Poças abordou a questão da “Tuberculose no Romantismo” – e por terminarem com uma homenagem a um destacado infeciologista (já aqui mencionada). Esta reunião cientifica tem ainda como características diferenciadoras o facto de alternar conferências com mesas redondas, integrar elementos de outras especialidades e de outras profissões, privilegiando os diferentes Serviços do Centro Hospitalar de Setúbal, atribui prémios para comunicações livres que são de manifesto interesse formativo (cursos da Sociedade Europeia de Doenças Infeciosas e do IHMT ou do INSA), além de uma componente cultural associada (teve um concerto de piano por um jovem e promissor aluno do Conservatório, filho de um antigo doente de José Poças, para além de ter tido uma exposição paralela de fotografia intitulada “Paisagem Humana” da autoria de dois médicos (José Barata e João Taborda, este a título póstumo), tal como a oferta a todos os palestrantes de livros de manifesto interesse para a temática das Doenças Infeciosas (o do conferencista da abertura, sobre os “Contágios”, e, a última publicação da autoria do presidente da comissão organizadora, intitulada “Reflexões em tempos de Pandemia”.